terça-feira, 18 de maio de 2010

Consciência Mirim


Nem tudo que é lícito é honesto. Pior: nem tudo que é lícito e honesto é bom. Pode parecer um contrasenso, mas essa é a idéia que me vem a cabeça quando penso no crescimento desordenado da cidade de Salvador - e nem estou tratando do mérito da legalidade ou não das concessões feitas a empreendimentos imobiliários da cidade, principalmente na Avenida Luiz Viana Filho, mais conhecida como Paralela, um dos últimos resquícios de Mata Atlantica que sobrevivem a voracidade da construção civil irresponsável.
Folheando digitalmente o jornal A Tarde de 18 de maio, me surpreendo com mais um indício que corresponde com o que digo. O título: "Família acorda com tamanduá-mirim dentro de casa em Patamares."
O assunto me chamou a atenção e continuei lendo: Os moradores da casa nº 68 do condomínio Colina C de Patamares acordaram, nesta segunda-feira, 17, com a visita inesperada de um tamanduá-mirim. Animal raro e considerado endêmico dos remanescentes de mata atlântica da Avenida Paralela, o bicho, segundo a médica veterinária Carline Dias é uma prova da rica biodiversidade da região. "Essa espécie está com o seu habitat cada dia mais reduzido", afirmou ela, que mora na casa onde o tamanduá escolheu para se abrigar. Não pude deixar de notar a ironia da situação. O tamanduá, como se soubesse quem ocupava a casa, escolheu justamente a de uma veterinária para se refugiar. Como num ato desesperado, foi tentar um internamento na casa de uma "médica de animais" que, pelo que demonstrou ao falar ao jornal, tem plena ciência da raridade do espécime e, muito mais, tem plena consciência (?) de residir em área que foi dilapidada ambientalmente, provocando a morte e o desequilíbrio de fauna e flora num ecossistema em franca extinção.
Talvez o tamanduá tenha "invadido" a residência da Dra. Carline para requerer a reintegração de posse do seu terreno frente a uma pessoa que, a primeira vista, se mostraria sensível a sua causa. Realmente, a veterinária mostrou-se preocupada com o desmatamento que poderá vir a destruir a biodiversidade do Parque do Vale Encantado, situado ao fundo de sua residência. É pretendida a construção de uma nova avenidade que cortaria o local. É verdade, o sono da Dra. Carline estaria comprometido devido ao novo fluxo de automóveis que transitaria diuturnamente por lá, nem chegando aos pés do incômodo causado por um simples e desesperado tamanduá que, além de tudo, é mirim. Outro inconveniente seria a possível visita de outros espécimes não tão amistosos quanto o tamanduá: cobras, aranhas, escorpiões...
O condomínio "invadido" pelo tamanduá foi construído, suponho, sob licença do IMA, Instituto do Meio Ambiente. Dentro das normas, não há que se questionar da licitude e honestidade das propriedades. Neste caso, a lei atenua as consciências e ninguèm se sente culpado, responsável, por adquirir um imóvel que contraria o bom senso ambiental. Muitos querem ter o conforto de morar pertinho ou até dentro de uma floresta, mesmo que haja o inconveniente diário de uma visita de um representante da mata dizendo, quase gritando: Vocês estão no lugar errado!

Carlos Allenzeck, 18 de maio de 2010

Link para a matéria do Jornal A Tarde: http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=2483728